“O meu trabalho é sobre a condição humana” e outras reflexões de Caio Fernando Abreu para escritores

Bob Wolfenson/ Editora CRV

Caio Fernando Abreu (1948-1996) se tornou um nome imprescindível para nossa literatura. Compreender seu processo criativo é compreender a literatura como uma parte intrínseca de nossa existência; é adquirir uma dimensão maior da vida como um todo. Estas oitos pérolas são contribuições extraordinárias para quem busca aperfeiçoar o ofício de contador de histórias. Aproveitem.

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Sua escrita será reflexo de seu tempo e geração

[…] Penso no escritor sempre como fotógrafo de seu tempo, embora não tenha essa preocupação deliberada com a contemporaneidade do texto. Acho que qualquer preocupação em dirigir a obra para o contemporâneo é extraliterário. Por outro lado, sinto-me extremamente comprometido com as coisas que minha geração conheceu […] No momento em que minha literatura tem uma marca forte de contracultura, é porque ela fatalmente está definida por essas experiências […]

O simples fato de estar vivo influenciará o seu trabalho

Sofri, sem dúvida, grande influência de Clarice Lispector, mas também de Érico Veríssimo, Graciliano Ramos, Virginia Woolf e, mais recentemente, de John Fante. À maneira de Bob Dylan, minhas influências são todo o ato de estar vivo. Tudo o que eu vi e vivi pelas estradas, todas as pessoas que cruzaram o meu caminho e, ainda, coisas como o jazz, a pintura de Van Gogh, a dança de Pina Bausch.

[…] Tenho uma curiosidade imensa de saber por que estou vivo, o que significa o céu, o que significa morrer. Portanto, é natural que em meu trabalho estejam presentes todas essas ânsias filosóficas exaltadas. Muitas vezes o que torna digna a vida de um homem é o fato de ele olhar para o céu e dizer: “Meu Deus, que coisa imensa…” e perguntar: “Por que eu estou aqui?” […] Nesse sentido, minha literatura busca um caminho cada vez mais “solar”, o caminho da clareza, da concisão, da beleza […].

Entender a importância do ‘outro’ em sua vida é fundamental para sua escrita

[…] Seria muito difícil escrever, se não fossem certas benditas pessoas que socorrem você, às vezes até sem saber, em determinados momentos. O inferno são os outros, sim, mas às vezes também podem ser o paraíso. Por isso essas pequenas homenagens, como agradecimentos, retribuições pelo que me deram.

Os gêneros não se esgotarão se você fazê-los bem

Dizem […] que James Joyce esgotou o romance, em “Ulisses”. Mas foi depois disso que, por exemplo, Virginia Woolf escreveu “As Ondas” ou Guimarães Rosa, “Grande Sertão”. Nem o conto, a ópera ou o soneto serão formas esgotadas, enquanto alguém for capaz de fazê-los bem. Com vigor, com talento. Quem são esses formadores de opinião que decretam esse tipo de coisa? Foi essa gente que, na década de 70, decidiu que o escritor brasileiro era um luxo. Hoje é um lixo.

Outras linguagens vão (e devem) inspirar sua literatura

[…] Quando eu escrevo, às vezes eu uso um processo que é de cinema, que é de procurar locações para os textos. Se se passa em uma determinada rua que eu imagino, aí procuro uma rua que se parece com aquela que eu tenho na cabeça. No caso do romance “Onde Estará Dulce Veiga?” eu procurei todas as locações. Eu tinha uma amiga que eu saia com ela de carro e a gente ia procurar bairros de São Paulo, locus como a Freguesia do Ó, Morumbi, onde se passavam alguns trechos do romance […]

Escrever sem negar a verdade é ir além dos rótulos

Não existe literatura gay. A literatura ou é boa ou é má literatura […] Considero toda essa discussão muito perigosa, porque é uma tentativa de colocar as coisas em prateleiras, para que elas não sejam perturbadoras. O meu trabalho é sobre a condição humana e absolutamente tudo cabe dentro da condição humana. Eu gostaria que uma pessoa, ao ler um livro meu, percebesse a dimensão disso, e não ficasse procurando classificações.

Eu acho que o que perturba as pessoas em geral, não só nos meus livros, é lidar com a verdade, com as verdades humanas. A melhor definição que eu conheço de kitsch é a ideia de mascarar a morte, mascarar a fatalidade da nossa própria morte. O Barroco vem daí; tudo vem da negação da morte; e eu acho que quando algum livro, algum filme, alguma coisa toca mais profundamente nessa verdade terrível das pessoas, o primeiro movimento, a primeira tendência, é negar, é recusar isso.

Sua escrita tem (ou deveria ter) um papel em tempos caóticos

Vagamente intuo que teremos que alcançar uma síntese de todo o saber para enfrentar o terceiro milênio. Talvez a arte devesse ter um papel um pouco como o da religião, no sentido latino de religare mesmo. Um sentido quase ecológico, para ajudar o ser humano a reintegrar todas as suas porções perdidas, fragmentadas. Propor outros mundos alternativos, novas leituras do real.

Sua perspectiva é uma bela contribuição para a literatura, ainda que você não concorde com isto

Às vezes penso se escrever não é inútil, porque tenho a impressão de que não estou colaborando socialmente. Aí lembro de uma coisa que meu terapeuta falou, certa vez. Ele me disse que os escritores são biógrafos da emoção. E se daqui a 50 anos alguém quiser saber o que as pessoas sentiam nos anos 90 pode encontrar algumas respostas, talvez, na literatura. Então, eu quero biografar o humano do meu tempo. Se conseguir fazer isso de uma forma que enobreça o homem, vou me sentir feliz, sereno. Acho que serenidade é uma coisa importante.

Referências:

Entrevista ao jornal ‘O Estado de São Paulo’ em setembro de 1990 (publicado em 27 de agosto de 1996).

Entrevista ao jornal ‘O Estado de São Paulo’ em 30 de agosto de 1990

Arquivo TVE: Estação Cultura

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