Sob as asas do Anjo Exterminador

Vós não vos aplacais com sacrifícios rituais;
e se eu vos ofertasse um sacrifício, não o aceitaríeis.

SEGUNDO LIVRO DOS SALMOS (50: 18)

Don’t you see me prayin’?
Don’t you see me down here prayin’?
But the Lord said: Go to the devil
The Lord said: Go to the devil

NINA SIMONE: “SINNERMAN”

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É sintomático que o mais recente retorno de Ciro Gomes à cena política tenha sido na Europa. O fato expõe seu isolamento após seu pior resultado eleitoral em quatro tentativas de chegar à presidência. Conquistando 3% dos votos válidos nas eleições que transformaram a polarização Lula-Bolsonaro em um monolito intransponível, Ciro chegou à Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa ciente de que “já não representava uma corrente de opinião” no Brasil. Prova disso, era que Sergio Moro, o maior arrivista do país desde Carlos Lacerda, fora eleito senador da República, enquanto “eu estou aqui, falando sozinho”.

Em sua palestra para estudantes brasileiros migrantes, Ciro repetiu o diagnóstico que expôs em seu livro Projeto Nacional: o Dever da Esperança, lançado em 2020. Fez suas habituais provocações a Lula e a Bolsonaro. Denunciou esquemas de corrupção que já ocorrem no atual governo. Refreou-se, tentando não sentir prazer em criticar, já que estava em um “processo de desintoxicação”.

Entre as mais distintas perguntas, os alunos ora cobravam de Ciro uma explicação para seu fracasso eleitoral, ora um alento em tempos herméticos. Sentindo-se órfãos de uma liderança política, repetiram mais de uma vez a singela pergunta: “E aí, Ciro?”. Este, por sua vez, a devolvia: “É, e aí?”.

Nas eleições, Ciro dizia que encabeçaria um grande movimento progressista; que se fosse eleito, era porque uma revolução teria acontecido no Brasil. Recusava, porém, o que julgava ser o “personalismo típico do caudilhismo latino-americano”, presumindo certa autonomia intelectual de quem decidisse fazer parte do movimento. Ciro, assim, negava-se a ser uma liderança política, fazendo com que sua base de apoio se movimentasse de acordo com a conjuntura, sem lhe jurar fidelidade. Tanto, que o tal “voto progressista”, que lhe garantiu 12% do eleitorado em 2018, caiu no colo de Lula após este deixar a prisão. Dessa forma, a estratégia de João Santana, seu marqueteiro em 2022, consistiu em acenar para os conservadores que se decepcionaram com Bolsonaro e convencer os eleitores que votariam em Lula apenas para evitar a reeleição do capitão de que Ciro era uma possibilidade.

Ciro, assim, potencializou seu temperamento mercurial e partiu para o ataque. Errático, sua verborragia acertou a todos, mas não aglutinou nenhuma força social. Sem coligação, preteriu sua vice, Ana Paula Mattos, e seu partido, o PDT, crente que sozinho poderia enfrentar as forças dominantes. O resultado foi ele ser alvo de uma campanha de coação organizada pela elite artística da zona sul do Rio de Janeiro que exigia sua renúncia em prol de Lula.

Após os resultados do primeiro turno, Ciro, a amigos, disse torcer para que a História se colocasse a favor do trabalhismo que ele adotara em sua filiação ao partido de Brizola. Mesmo assim, se reduz ao fracasso de um ciclo eleitoral, ignorando que o lulismo se acerca de seu ocaso. Que o deus contra quem se rebelou ao longo de sua trajetória está perdendo o brilho e muito em breve preservará apenas os mitos que adornaram sua imagem.

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O sucesso eleitoral de Lula em 2002 deve-se, em muitos aspectos, a José Dirceu. O Rasputin do politburo petista foi o responsável por seduzir o capital financeiro ao metamorfosear o líder da esquerda em “Lulinha paz e amor”. Tal transformação na imagem do Lula “grevista e radical” teve seu apogeu com a Carta ao Povo Brasileiro, vulgarmente conhecida como “Carta aos banqueiros”. Articulada por Antônio Palocci — arquiteto do plano econômico lulista — em conjunto com o mercado, Dirceu contribuiu com a redação final da carta, o que lhe garantiu a Casa Civil.

Dirceu centralizava o poder, dando a última palavra nos demais ministérios. Era também responsável pela articulação política com a oposição e, segundo Roberto Jefferson, era com quem a base aliada do PL e do PP conversava para receber até R$ 30 mil para votar a favor de projetos de interesses do governo.

Ao cair em desgraça graças ao escândalo do Mensalão, Dirceu deixava vaga a cadeira em que se sentava como sucessor natural de Lula. O presidente, porém, contava com uma fortuna maquiaveliana. Não só fora poupado por Jefferson na CPMI dos Correios em que este detalhou o esquema, como fora reeleito em 2006 fugindo da Inquisição dos debates em que seria pressionado à direita, por Geraldo Alckmin, e à esquerda, por Heloísa Helena.

Lula sabia também que com a imagem do PT rota, seria sua chance de isolar lideranças petistas que, como Dirceu, buscariam autonomia, drenando sua influência no futuro governo que lhe sucederia. Escanteou Tarso Genro e Jaques Wagner, nomes proeminentes do partido, e fora procurar o sucessor ideal fora de casa.

Acuado pelo PMDB, pedra de sustentação do governo que reivindicava maior protagonismo, foi a chance de Lula tentar afrouxar o nó entorno de seu pescoço. Passou a considerar como sucessor Aécio Neves, então governador de Minas Gerais, uma vez que ele especulava deixar o PSDB e era um nome que agradava a centro-direita.

Se a destra mimava Aécio, contemporizando com o fisiologismo, a canhota de Lula afagava Ciro Gomes, ex-ministro da Integração Nacional de seu primeiro mandato, naquela altura deputado federal pelo PSB, a quem Lula considerava o nome mais maduro na esquerda para sucedê-lo. Ciro pagou tributo, dizendo-se surpreso pela “delicadeza” de Lula ao considerar partidos da base aliada para escolher seu sucessor. O “ato de habilidade política” o motivara a colocar-se a disposição do presidente.

Envaidecido pela exaltação contínua de seu pupilo, Lula postergava sua decisão. Ingênuo ou desavisado, Fernando Haddad dizia às claras que Lula já havia escolhido Dilma Rousseff como sucessora. Burocrata-tarefeira, Dilma era rechaçada pelos petistas históricos, mas reconhecida por Lula por sua lealdade, ainda que lhe faltasse malícia política.

A gafe do professor uspiano, plantada ou não, fez Ciro traçar a linha em defesa de sua candidatura. Parte do comitê de crise do governo no auge do Mensalão, Ciro conhecia bem o modus operandi petista. Passou a cortejar Aécio, visando um aliado, e, reativo, teceu críticas públicas ao governo. “Falta projeto estratégico ao Brasil e ao governo Lula”; “Fiquei chocado ao ver no governo Lula o mesmo patrimonialismo praticado por FHC” foram duas das várias pérolas ciristas ao longo daquele primeiro imbróglio.

Lula, tentando amenizar a saia-justa, passeava de mãos dadas com Ciro e Dilma em eventos públicos. Inteirado do constrangimento de andar com dois candidatos à sucessão, resolveu o impasse mandando Ciro à missão especial em São Paulo, para onde o deputado acabou por transferir seu domicílio eleitoral a pedido do presidente.

Em reduto petista, Ciro passou a ser tratado por seu partido como candidato, mas a governador do estado. Recebeu apoio entusiasmado de Márcio França e Paulinho da Força, que, esperando a unção de Lula, dizia que “Ciro só não sai candidato se o PT não quiser”.

Não demorou muito para Ciro descobrir que a missão dada por Lula era do tipo suicida. Aloizio Mercadante, almejando a vaga no Palácio dos Bandeirantes, foi o responsável por enxotá-lo da disputa paulista. “Entendo que o PSB tem todo o direito de apresentar o nome de Ciro Gomes ao PT, assim como o PT tem o direito de apresentar seus nomes ao PSB”.

De volta à disputa nacional, Ciro fincou o pé. “Ou serei candidato a presidente, ou não serei a nada”. Mas o cerco passou a abranger Cid, seu irmão, então governador do Ceará. Dirceu, emergindo do limbo da política, trazia um ultimato: ou Ciro retirava sua candidatura ou Lula não apoiaria a reeleição de Cid.

“Esse eu já mandei pastar”, dizia Ciro, que enquadrou o presidente. “Por que ele não pode tratar esses assuntos com franqueza? Por que não trata comigo cara a cara, francamente?”

Lula assim o fez. Esperara um compromisso em Pernambuco para definir a questão de uma vez por todas. O palco não fora escolhido ao acaso. Lula, melhor do que ninguém, sabia que para o PSB tudo era negociável, menos Pernambuco, berço eleitoral dos Campos, herdeiros de Miguel Arraes, onde Eduardo buscava a reeleição ao governo do estado.

Ao lado de seus dois possíveis sucessores, Lula conjurou a união entre as esquerdas: “Eu gostaria, e o momento vai dizer se vai ser possível ou não, que todos nós tivéssemos apenas um candidato”. Demarcou o inimigo a ser batido: “Que fizéssemos uma eleição plebiscitária, ou seja, nós contra eles, pão pão, queijo queijo”. Mostrou-se resignado: “Se não for possível, paciência”, apenas para ter impulso e dar o bote: “Se a gente não se entender, eu não me vejo vindo a Pernambuco, no palanque desse moço aqui [aponta para Eduardo Campos], porque nós construímos essa relação”.

Se em março de 2010, Lula, ao oficializar a candidatura de Dilma, encerrava a novela da sucessão que começara dois anos antes, o PSB precisaria de mais um mês para rifar as pretensões de Ciro em ser presidente. Eduardo Campos não colocaria em risco sua reeleição preterindo o apoio de Lula, que em seu último mês como presidente, seria aprovado por 87% da população, segundo o IBOPE. Ciro jamais seria candidato porque Lula não o queria e usou de toda sua força política, e popularidade, para impor sua vontade num processo eleitoral que teria o desfecho que ele escolhesse.

*

Ciro define sua vida partidária como trágica. Falta-lhe, talvez, um certo senso de autoironia para reconhecer que — sem querer culpabilizar a vítima — foram suas decisões equivocadas que viabilizaram as condições que o levaria a derrotas eleitorais, ainda que os ventos lhe fossem favoráveis.

Em 1997, ele rompeu com Fernando Henrique Cardoso, acusando-o de derrubar a economia e favorecer os abutres rentistas. Sua saída do PSDB era dada como certa, ainda que Tasso Jereissati, seu padrinho político, reafirmasse sua importância e que a composição dos tucanos para 2002 passava por Ciro.

Miguel Arraes, em seu outono político, cortejou Ciro, aventando a possibilidade de bancar sua candidatura à presidência em 1998 caso este se filiasse ao seu PSB. O núcleo duro socialista reagiu com virulência. A aposta de Arraes na fama incipiente de Ciro era, para essa fração do partido, uma tentativa de seu fundador ganhar fôlego e travar o processo de renovação que, naquela altura, já não passava por suas mãos.

Em setembro do mesmo ano, Ciro acabou se filiando ao PPS de Roberto Freire. Pelo partido, acabou saindo candidato à presidência, esbarrando na barricada que a grande mídia criou para proteger FHC das críticas e garantir sua reeleição. Naquela ocasião, a Rede Globo não promoveu seu tradicional debate entre os presidenciáveis — encorajando as demais emissoras a também não fazê-lo —, o que colaborou para que as eleições fossem definidas em primeiro turno, graças a “falta” de antagonismo ao presidente.

Sem Ciro, José Serra encontrou o caminho aberto para suas pretensões megalomaníacas; acabou por ser o candidato do PSDB à presidência em 2002, quando FHC deixaria o poder com baixa popularidade. Reconhecidamente anticardosista, Ciro tornou-se o alvo principal dos tucanos naquele pleito. Assegurou em diversas ocasiões que a campanha de Serra contratou um psiquiatra americano que teria encontrado seu calcanhar de Aquiles: a vaidade que o levou a se casar com a atriz Patrícia Pillar. Assim, bastaria à campanha tucana insistir que o sucesso político de Ciro provinha de Patrícia, não de méritos próprios.

Sua vaidade de fato recrudesceu e é daquela eleição a célebre frase que o faria cair em desgraça. “A minha companheira tem um dos papéis mais importantes, que é dormir comigo”. Vilipendiado pela mídia, que ecoava a propaganda de Serra, Ciro, que chegou a encostar em Lula nas intenções de votos ao longo do ano, terminou o processo em quarto lugar atrás de Anthony Garotinho, que conseguira que o PSB de Arraes caísse em seu colo.

Anos depois, já no PSB, Ciro mostrou de novo falta de instinto político. Para preservar seu apoio a presidente Dilma, com quem digladiou e perdeu o posto à sucessão de Lula, deixou o partido em setembro de 2013 quando a sigla rompeu com o governo para lançar, no ano seguinte, o nome de Eduardo Campos à presidência.

No transcurso daquela campanha, Campos morreu após acidente no jato em que voava. A cabeça da chapa acabou com Marina Silva. Em 2010, a ambientalista protagonizara uma exitosa campanha pelo PV, em que conseguiu 19 milhões de votos em sua tentativa de ser chefe do executivo federal. Após não conseguir o registro de seu partido, a Rede Sustentabilidade, junto ao TSE, Marina, quatro anos depois, filiou-se ao PSB, que a presenteou com o posto de vice de Campos, que tentava surfar em seu capital político recém-adquirido.

Que Ciro não estaria contando com uma fatalidade era óbvio. Mas com a morte do principal líder do partido, abria-se a porta que lhe fora negada no ciclo eleitoral anterior. Ao optar por apoiar Dilma, Ciro via Marina ganhar o PSB sem grande esforço. Ela o alugaria enquanto não tivesse sua própria legenda.

De Marina, Ciro dizia que “seu descuido com a vida real faz com que ela apresente, como única proposta concreta, uma aberração, que é a independência do Banco Central”.

Ao depreciá-la, Ciro minimizava o fato de Marina ter assumido seu lugar como alternativa ao PT. Se não como movimento político organizado — que o “cirismo” também não o era —, ao menos como fenômeno eleitoral promovido por uma classe média letrada que possuía valores progressistas, mas que se afastara do PT pelos sucessivos escândalos de corrupção.

Rotulando os eventos de junho de 2013 como parte de uma guerra híbrida imperialista, Ciro minimizou os efeitos daquelas jornadas. Esteve com Dilma quando sua reeleição tornara-se uma incógnita e quando o país rachou na disputa do segundo turno de 2014 contra Aécio, que um dia ele chamara de “grande estadista”. Mesmo após considerar o segundo mandato de Dilma o maior estelionato da história da política, denunciou a conspiração de Temer, chamando o processo de impeachment contra a petista de golpe de Estado.

*

As efusivas jornadas de junho de 2013 acabaram por desaguar em uma new wave conservadora. Alçado à fama pela mídia marrom, na esteira da Operação Lava-Jato, Sergio Moro aspirava refundar o Brasil. A High Society urbana gourmetizou as ruas com seus pulôveres e calças caqui. Protestar na Avenida Paulista era tendência entre a classe média branca e endinheirada. Nasce, assim, este termo complacente que viria a ser a força motriz da política no fim daquela década: o antipetismo.

Desmantelando a esfera política, o lavajatismo abria uma fenda em nossa já débil democracia; neste vão, fecundara um DNA autoritário, recalcado e, demarcando o zeitgeist, tosco. A classe dominante chocara o ovo da serpente, dando vida política a Jair Bolsonaro — até então uma personalidade folclórica recorrente em programas sensacionalistas. O radicalismo da direita ganhou força ao passo que o Brasil colapsava. O processo de impeachment contra Dilma levou a institucionalidade do país às ruinas, e delas surgiu o bolsonarismo, ungido pela memória do perverso Carlos Alberto Brilhante Ustra.

Na liturgia golpista, “bastava Dilma sair que os empresários voltariam a investir no país”. Mas o governo Temer, acossado por escândalos de corrupção, refém do fisiologismo do Congresso Nacional, não tinha imperativo político para pautar as contrarreformas neoliberais. Em setembro de 2017 era reprovado por 77% da população.

Moro mirava Lula. Lula, condenado a nove anos e seis meses de prisão pela Lava-Jato, mirava 2018, mas estava mais próximo da inelegibilidade. Sem norte, a esquerda esquadrinhava Ciro, que naquele início de 2017 arrefecia a ideia de ser candidato. “Não tenho a menor vontade de ser candidato se Lula for”, repetia.

“Menos em homenagem e mais porque a tendência é ele polarizar o processo. Na hora em que for candidato ele racha o país em bases odientas, rancorosas, violentas, como nós estamos assistindo aos lulistas e antilulistas. E o país não tem ambiente para discutir seu futuro”.

Suspenso do processo eleitoral que tanto lhe custava, Ciro previa seu futuro e os termos de sua derrota.  “Vou ter um papel nobre, vou lá para meus 12%, 15% no mínimo, mas daí dizer para o povo que acredito que vou ser presidente? Não consigo mentir desse jeito”.

A respeito de Bolsonaro, era menos alarmista. “Ele fala com franqueza, com um certo caráter tosco a categorias que inferiorizam os outros para que elas não se sintam tão nada. Ele cumpre um papel, na minha opinião, importante, porque ele aclara, ele tira o véu [do radicalismo]”. Defendia que uma vez ligada, a máquina eleitoral trituraria o capitão. Questionado se media as falas sobre Bolsonaro, confirmou: “Eu meço, e vou te explicar por que: porque ele votou em mim na eleição de 2002”.

O TRF-4 aumentara a pena de Lula para doze anos de prisão. Mesmo Ciro passou a enxergar que ele poderia se fartar com a debilidade petista. Para abrandar a fúria do deus enclausurado, declarou em sua famosa entrevista ao El País Brasil que “uma chapa com Haddad em 2018 seria o dream team”. “Haddad representa o que há de melhor no PT e não carrega o estigma que é, em parte, injusto”.

Em abril de 2018, a extrema-direita lavajatista entrou em gozo máximo quando Lula se entregou na sede da Polícia Federal de Curitiba. Era o candidato do PT até momentos antes do fim do período para requerimento de registro de candidaturas junto à Justiça Eleitoral. Em carta, sujeitou o destino da esquerda a seu futuro incerto.

Em seu testamento, Lula definia Fernando Haddad como cabeça de chapa. Incitava o PCdoB a retirar a candidatura de Manuela D’Ávila ao executivo federal, de modo que ela assumisse a vice-presidência na chapa petista. Sacrificava a candidatura de Marília Arraes à governadora de Pernambuco em troca de receber do PSB (que buscava a continuidade de seu poder no Estado com Paulo Câmara) a neutralidade do partido no pleito nacional — era o primeiro golpe contra Ciro, que buscava apoio dos socialistas. Vetava o apoio do DEM ao PDT, alegando que este deveria compor a “Frente de Esquerda” que ele articulava — o apoio não se concretizou e Ciro sofria com o segundo golpe que fragilizava ainda mais seu poder de fogo.

Lula paralisou a esquerda enquanto Bolsonaro arrasava nas pesquisas eleitorais e esvaziava a centro-direita que se aglutinava em torno de Geraldo Alckmin. A facada de Adélio contra o capitão cristalizou o que surgia com nitidez no horizonte meses antes: a extrema-direita ascenderia ao poder. Em nada ajudou a consagração de Haddad como o candidato de Lula. Nas pesquisas, o ex-prefeito de São Paulo era, dentre todos os candidatos, o único que perderia para Bolsonaro no segundo turno.

Sobre os movimentos que o isolaram, Ciro disse que PT agiu por medo. “Tá tudo certo. Eu só acho que é um erro grave. E não é nobre, mas ninguém precisa ser nobre. E pegou mal pra cacete, pegou muito mal. O que é, afinal de contas? Tirar o meu direito de falar uns segundozinhos a mais”.

Com esse mesmo medo, Lula, solto pelos que o prenderam, criou, quatro anos depois, o consenso entre as mais diversas frações da sociedade: só ele venceria o fascismo bolsonarista. Sendo ele a “escolha politicamente consciente”, obscurecera com suas asas de Anjo Exterminador qualquer força que se contrapusesse ao seu poder.

Ciro, aspirante a deicida, cometeu o pecado maior, o da soberba. Esta, que geralmente acomete os pequenos, atenta contra outra divindade, a História. Imparável em seu transcurso, ela se expressa como tragédia, repetindo-se — ainda segundo Marx — como farsa. E como toda farsa, lá está seu lado burlesco, ridículo, que condena um país a rir de sua própria desgraça.

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